20/05/2003

Da hora do banho

Lebres tomam banho, não pensem vocês que não. Com muita água, muitos sais, esponjinha, sabonete, óleos, et cétera e tal. Entramos rastejantes, agonizando, pedindo 'uma água quente, por caridade...', e saímos flutuando em bolhas cor-de-rosa, ao som de Fly Me To The Moon. E todo dia tomo banho, não é ostentação. Sou quase uma lebre-do-mar.


(a lebre-do-mar)


Hoje, como todos os dias, fui ao meu banho. Naquele estado em que as lebres-do-mar ficam quando estão longe da água: murchinha e beirando o desfalecimento. Tamanha era a vontade de sentir gota por gota das gotas do meu chuveirinho. Arrastando a barriga no chão, deixando o rastro de lesma para trás, fui, belos movimentos contráteis, até o banheiro.

Só o fato de estar perto do box de banho já me animou a tirar a roupa. Não, não pensem numa coisa sensual. Estava com muita pressa, de modo que a blusa saiu pelos pés e a calça, pela cabeça. As peças iam caindo no chão, desmazeladas. "Nem confiança para elas! Que se lixe, quero mais é mesbaldááá! Pro diabo com os tênis TUF! TUF!"
A afobação faz isso com as pessoas. Tudo bem: com as pessoas que amam a arte do banho.

Exatamente como vim ao mundo, já começava a ouvir Frank Sinatra. Passei a mão nas minhas 2 toalhas (é verdade, uso duas: uma para o corpo, outra para enrolar as orelhas, que ficam pingando nas costas) e entrei no box. Liguei a água morninha: "ahhh... Que maravilha...! O mundo já pode acabar." E estou assim, quase entrando em alfa, beta, gama, delta e todas as outras letras estrangeiras, quando, olhando para a janela do 2º andar, o que eu vejo?

?


ARNALDO.



(pausa dramática)

(fim da pausa dramática) Ele mesmo, o Arnaldo. Acontece que minha casa está em reformas, cheia de pedreiros para todos os lados, batendo, furando, lixando, comendo, pintando e tudo mais que os pedreiros fazem.
E o Arnaldo é um deles.
Arnaldo, o incumbido de limpar as calhas.
Arnaldo e aquela escadona horrorosa dele.
Arnaldo e aquela carinha de cearense, e aquela voz engraçada, e aquele chapeuzinho de couro dele.
O ARNALDO E AQUELA MALDITA CALHA!
Com tanta calha no mundo - e, inclusive, em volta da minha casa tem muita calha - ele decidiu limpar, justamente, a que passa na frente da janela do banheiro. Por sorte, a janela é alta, e tudo o que ele pôde vislumbrar foi minha cabecinha feliz e espumante. Mas e o susto? E vai que Arnaldo decide que altitude pouca é bobagem e resolve subir uns degraus?

Não tive dúvida: bolhas desprendendo da cabeça, toalhinha enrolada e cara roxa de raiva, abri a janela e botei meu dedinho nervoso para fora:

- Oi, Cstchâni, como vai? (Arnaldo falando.)

- (dedinho em riste) VOCÊ NÃO DECIDIU COMEÇAR A LIMPAR JUSTAMENTE POR ESTA CALHA, NÃO, NÉ ARNALDO???????

- (Arnaldo, alheio ao meu dedinho, às bolinhas de sabão da minha cabeça e aos meus gritos) Hehe... Vamo trabaiá, né?

- (dedinho que, de tão em riste, já tremia) VOCÊ NÃO PODE LIMPAR ESSA DAQUI AGORA, ARNALDO! ESSA NÃO, NÉ, ARNALDO??

- É, uai, Cstchâni... Essa calha daqui, hehehehehe... (calmamente pegando um martelinho.)

- (mão espalmada) MAS ESCUTA AQUI, ARNALDO, VC NÃO 'TÁ VENDO A FUMAÇONA DE ÁGUA SAINDO DESSA JANELA, ARNALDO? DA JANELA DO MEU BANHEIRO, ARNALDO?

- Ah, num tem pobrema, viu, acho qu'éla num chega na calha não... (tóim!?)

- O PROBLEMA, ARNALDO, É QUE EU ESTOU USANDO MEU BANHEIRO, ENTENDE?? (mão fechada, golpeando no ar.)

- Ah, 'tá ocupada aí? (titím! - barulho da ficha de Arnaldo caindo) 'Tá tomâno banho? AH, VOCÊ 'TÁ PELADA??(essa última, para todos os pedreiros ouvirem.)

- 'TOU, ARNALDO! (mão tentando acertar a escada, para causar um pequeno acidente ao Arnaldo), SAI DAQUI COM ESSA ESCADA, ARNALDO!

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